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Linhas com que coser

Âncora 1

Conhecer o vestuário de luto nos séculos XV e XVI

12/02/2021

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Christoph Weiditz, Trajes de luto em Castela (possivelmente uma capa de capelo e um manto de viúva), in Trachtenbuch, c. 1530, figs. 26 e 27.

© Germanisches Nationalmuseum, Nuremberga.

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Weiditz_Trachtenbuch_026-027.jpg

O luto é a demonstração do sentimento de dor experienciado pela morte de um ente querido, mas a palavra também é usada para descrever os comportamentos que um conjunto de indivíduos adopta no seguimento da perda. O luto é transversal no tempo, apesar de as suas vivências e manifestações diferirem consoante as sociedades, as culturas, as crenças ou as religiões. 

Nos séculos XV e XVI tomava-se luto mais frequentemente que nos nossos dias. O luto podia ser adoptado por uma multiplicidade de motivos: pela morte de pessoas próximas, pela morte de indivíduos importantes (reis, príncipes, infantes…) ou ainda pela ocorrência de grandes catástrofes, tanto no reino como no estrangeiro (Lopes 2016: 7). As manifestações de luto na Europa eram bastante variadas, não deixando elas próprias de evoluir ao longo destes séculos.
Recentemente, Ana Mafalda Lopes (2016) demonstrou como em Portugal na transição da época medieval para a moderna estas manifestações se foram modificando, na senda do controlo das pulsões que Norbert Elias baptizou de “processo civilizacional”. Entre os cortesãos foi-se verificando uma crescente tendência para a privatização da dor e do luto, que passava pelo controlo das formas de expressão das emoções e pela ritualização dos comportamentos. Pelo contrário, entre os membros dos grupos sociais não privilegiados, as formas menos contidas e reguladas de expressão das emoções não sofreram alterações. Com efeito, certas práticas que hoje consideraríamos extremas mantiveram-se, entre elas o desprezo pelo corpo, o abandono dos hábitos de higiene, o arrancar dos pelos, das barbas e dos cabelos ou ainda arranhar gravemente o rosto (Pereira 1998: 683). 

Âncora 5

Do ponto de vista colectivo, a prática lutuosa mais significativa eram a lamentação e os prantos públicos, um ritual com dimensão quase obrigatória ao longo das épocas medieval e moderna que expressava o desgosto do povo perante a morte de alguém importante, sobretudo se se tratasse do soberano, tendo em conta que o falecimento deste era sempre considerado com um acontecimento verdadeiramente perturbador da ordem natural (Buescu 2011: 213-214).

Neste contexto comportamental surge ainda a utilização de tecidos e peças de roupa que contribuem para caracterizar esta vivência. De facto, desde há muito que o vestuário se tornara numa das mais significativas expressões exteriores do luto, verdadeiro veículo comunicativo desse processo, socialmente codificado.

Nos séculos XV e XVI existiam têxteis especificamente utilizados em Portugal durante o período de luto: a almáfega – um tipo de burel, branco e grosseiro, feito da lã de pior qualidade (designada “churra”) (Glossário Portas Adentro, Letra A: 18; Costa 2004: 138; Nogales Rincón 2016: 233; Lopes, 2016: 12); o arbim – um tecido grosseiro de lã (Glossário Portas Adentro, Letra A: 29; Lopes 2016); o burel – um tecido de lã grosso e áspero (Glossário Portas Adentro, Letra B: 18; Nogales Rincón 2016: 233; Lopes 2016: 12); a estamenha – um tecido medíocre de lã confeccionado ao fuso (Glossário Portas Adentro, Letra B: 8; Nogales Rincón, 2016: 232; Lopes 2016: 12); o vaso – um tecido de lã preta especial para o luto (Pina 1914: 237); e, pelo menos a partir da década de 30 do século XVI, a sarja – um tecido de algodão, lã ou seda, que normalmente era entrançado, no sentido em que, aquando da sua produção, se empregava uma técnica caracterizada pelos efeitos oblíquos obtidos pela deslocação de um fio para a direita ou para a esquerda, em todos os cruzamentos de passagem de trama (Costa 2004: 156).

Desde a Idade Média que do outro lado da fronteira se usavam, para além destes panos, outros igualmente grosseiros, como a branqueta – um tecido de lã que costumava ser utilizado pelos mais pobres e para fazer roupas para os sargaceiros e para os pescadores poveiros (Glossário Portas Adentro, Letra B: 15); o canhamaço – um tecido de estopa grossa, proveniente do linho cânhamo ou do linho galego (Glossário Portas Adentro, Letra C: 12; Costa 2004: 142); a estopa – um pano de linho grosso que era normalmente tecido com a parte do linho que não passava pelo sedeiro (Glossário Portas Adentro, Letra E: 9; Costa 2004: 146); o saial – um tecido grosseiro e felpudo numa das faces (Glossário Portas Adentro, Letra S: 2); e a xerga – um tecido sem qualquer acabamento, que se emprega como sai do tear (Costa, 2004: 160). Estes tecidos também eram utilizados em Portugal, mas, de acordo com as fontes documentais conhecidas, não em contexto de luto. Refira-se ainda que que todos os tecidos aqui enumerados – com excepção do canhamaço e da estopa (que eram fabricados com fibras lináceas) e da sarja (um tecido de melhor qualidade, mas usado mais tardiamente) – eram produzidos em lã, e normalmente classificados como “grosseiros” porque não eram alvo de grande tratamento têxtil.

A maior parte destes têxteis, senão todos, e tendo em conta a sua qualidade tosca e medíocre, eram bastante desconfortáveis ao contacto da pele. No entanto, acreditamos que essa sensação seria um dos objectivos do uso destes tecidos, já que o desconforto funcionaria como penitência corporal, uma das formas de expressão de dor que se inseria no leque de comportamentos apresentados anteriormente. Por este motivo, estes têxteis eram também empregues na confecção de hábitos monásticos (Nogales Rincón, 2016: 232).

Por serem de fabrico grosseiro, estes têxteis tendiam a ser baratos. Todavia, quando ocorria um grande desastre e todo o reino se enlutava estes tecidos encareciam e, até escasseavam. A título de exemplo, veja-se como na sequência da morte em 1491 do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, o preço do burel aumentou atingindo os 300 reais a vara e, mesmo assim, chegou a esgotar (Braga 2008: 99). Como nem todas as franjas da população possuíam meios suficientes para adquirir estes tecidos nestes momentos, a solução era vestirem as suas roupas do avesso ou recorrerem a sacos e a cobertas usadas nos animais (Braga 2008: 100; Lopes 2016: 12).

Quando se destinavam ao luto estes tecidos não eram tingidos, pelo que a sua cor natural, amarelada ou esbranquiçada e/ou preta (resultante de ovelhas de pelugem preta), se foi tornando na cor simbólica do luto por excelência ao longo da Idade Média (Pereira, 1998a: 632; Nogales Rincón 2016: 231-233; Lopes 2016: 12). Do mesmo modo que a ausência de conforto simbolizava a penitência, por oposição às texturas suaves e aprimoradas do traje cortesão, a ausência de cor simbolizava a morte (Nogales Rincón 2016: 234), por oposição às vivas e brilhantes policromias que caracterizavam aquele tipo de vestuário (Rublack e Hayward 2015: 2; Lopes 2016: 12).

Desde a Roma Antiga que na Europa, além do branco, também se começou a usar o preto como cor de luto, sendo esta empregue na indumentária e nos objectos utilizados nos ritos funerários, já que significava a morte, a tristeza e a dor (Pastoureau 2008: 35; Requena Jiménez 2012: 210; Nogales Rincón 2016: 223, 227-229, 231). Em França até finais da Idade Média a cor do luto era púrpura, no caso dos reis, e branco no caso das rainhas, paradigma que só se alterou na viragem para o século XVI pelas mãos de Ana da Bretanha (1477-1514), que introduziu na corte francesa o preto como cor das rainhas-viúvas (Nogales Rincón 2016: 71).

Quanto ao caso ibérico, sabemos que o preto se utilizava como cor de luto no al-Andaluz antes do século XI, possivelmente por influência cristã, conforme nos relata o erudito hispano-árabe Ibn Hazm (944-1064) (Nogales Rincón 2016: 231). De acordo com vários outros testemunhos literários e iconográficos o uso de preto nas práticas lutuosas tornou-se comum em Castela a partir do século XIII. Anos mais tarde, pelo menos desde 1379, o uso de tecidos grosseiros estava legalmente reservado aos membros da família real e a alguns nobres, tornando-se assim numa manifestação de luto especialmente característica, ainda que não exclusiva, das elites políticas cortesãs e urbanas. Tecidos brancos e pretos alternavam-se e coexistiram em Castela até 1502, ano em que foi publicada uma pragmática que regulamentava o vestuário de luto. Segundo David Nogales Rincón, esta peça legislativa foi decretada por dois motivos. Por um lado, o consumo de vestuário especificamente destinado à expressão do luto era considerado bastante dispendioso: o seu uso era efémero (restringido ao momento dos funerais e aos dias posteriores) e era alvo de especulação comercial sempre que acontecia uma catástrofe que provocava o seu uso generalizado. Por outro, a utilização de alguns panos grosseiros como maneira de exibição da dor era considerada extrema (mesmo para os padrões da época), pois contrariava o princípio cristão da ressurreição e o ideal da humildade, já que o seu uso era tido como sinal de vaidade e fatuidade (2016: 231-236).

Em Portugal a utilização do preto como cor de luto foi surgindo gradualmente. A referência mais antiga que conhecemos data da morte de D. Fernando em 1383. Enquanto os outros fidalgos se vestiram de burel (provavelmente esbranquiçado), D. João Fernandes Andeiro, 2.º conde de Ourém, apresentou-se vestido de preto, talvez seguindo a moda estrangeira (Marques 1964: 230). Anos mais tarde, aquando do falecimento de D. João I, em 1433, o príncipe herdeiro D. Duarte também se vestiu de preto (Lopes 2016: 12). A utilização desta cor só veio a generalizar-se no reinado de D. Manuel I, tingindo tanto o vestuário de nojo como os paramentos funerários empregues em cerimónias fúnebres (Lopes 2016: 12).

Salientemos, contudo, que a utilização de preto nem sempre equivalia a um estado de luto. Considerando a estruturação das mentalidades e dos respectivos sistemas e sensibilidades de correspondência simbólica (que não cabe aqui esmiuçar), tantas vezes devedores da Antiguidade Clássica, o preto era, segundo David Nogales Rincón, uma cor à qual, na Castela da Idade Média, eram atribuídos quatro significados básicos, significados esses que acreditamos passíveis de serem estendidos ao caso português: em primeiro lugar, era associado à escuridão e às trevas; em segundo lugar, era utilizado como veículo de exteriorização da dor e da tristeza, adequando-se, por isso, ao luto; em terceiro lugar, tinha uma forte conotação com a expressão da penitência e dos seus valores, como a abnegação, o ascetismo e a humildade; e por fim, em quarto lugar, podia funcionar como uma manifestação de honestidade e moderação (2016: 227-228).

Além disso, a partir do século XIV, o preto tornou-se num sinal de distinção social e de magnificência principesca. Nesta época, o preto fez a sua aparição em dois locais distintos. Não só surgiu nos trajes patrícios e principescos em Itália, sendo, a princípio, somente um fenómeno urbano, mas também na corte do ducado de Borgonha. Neste último caso, foi João II, O Sem Medo (1371-1419) quem começou a vestir-se de preto em 1396, ano em que fracassou na sua cruzada contra os Turcos em Nicópolis. O seu filho, Filipe, o Bom (1396-1467), usou preto durante quase toda a sua vida, facto que os seus cronistas justificam como sendo a expressão do luto pelo seu pai.

Ainda que não possamos afirmar com certeza radicar nestas razões a importância representacional do uso do preto, na opinião de Michel Pastoureau o prestígio de Filipe, o Bom, foi decisivo para a adopção do preto como cor curial em todo o Ocidente (2008: 103).

A cor preta a que nos referimos não era propriamente o preto natural de alguns tecidos, derivado de um gene recessivo nas ovelhas – que cremos tratar-se da cor que as fontes documentais denominam como “pardo”, apesar de haver muita investigação por fazer em torno deste termo e do seu significado –, mas sim um preto especialmente produzido para tingimentos. Acontece que, quimicamente falando, o preto era uma cor muito difícil de sintetizar, algo que a tornava bastante cara e bastante rara. Por volta de meados do século XIV, com a evolução das técnicas e da tecnologia, tanto de produção como de fixação das cores, os tintureiros começaram a conseguir produzir pretos brilhantes, densos, permanentes e saturados que se tornaram num sucesso quando utilizados em vestuário cortesão. Por esse motivo, até ao século XVII, o preto era sinónimo de poder e um verdadeiro símbolo de distinção social (Córdoba de la Llave 2005: 12; Pastoureau 2008: 90-92; Nogales Rincón 2016: 230).

Além da qualidade dos tecidos e das cores, também existiam peças de vestuário específicas que podiam ser utilizadas em período de luto, como: a capa de capelo – uma capa comprida com capuz, utilizada, sobretudo, no período final do luto (Glossário Portas Adentro, Letra C: 13); o capuz – uma capa negra que cobria o corpo da cabeça aos pés (Glossário Portas Adentro, Letra C: 14); o capelo – uma espécie de touca ou capuz que podia ser utilizado tanto por homens como por mulheres (Glossário Portas Adentro, Letra C: 14); o hábito de viúva, semelhante a um hábito monástico; a loba – uma veste talar, sem mangas, que se utilizava sobreposta por diante (Glossário Portas Adentro, Letra L: 7; Nogales Rincón 2016: 229 e 238; Ferreira 2020); o manto, um grande véu preto utilizado pelas mulheres aristocratas, que chegava a arrastar pelo chão (Glossário Portas Adentro, Letra  M: 5); e, por fim, o mongi, traje de luto para mulheres não viúvas (Glossário Portas Adentro, Letra  M: 12) do qual desconhecemos as características específicas.  

A história das peças de vestuário e do significado das cores nos séculos XV e XVI em Portugal é ainda pouco conhecida, mas, tal como hoje, o que se vestia e como era uma das expressões mais comuns e visíveis do luto.

Andreia Fontenete Louro

Mestre em História Moderna

(este texto foi produzido no âmbito da bolsa de investigação do projecto DRESS – DesenhaR a moda das fontES quinhentistaS, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (ref. n.º 2277519).

 

Fontes

Pina, Rui de. Chronica de El-Rei D. Duarte. Estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães. Porto: Renascença Portuguesa. 1914.

Bibliografia

Braga, Paulo Drumond. O Príncipe D. Afonso, Filho de D. João II. Uma Vida entre a Guerra e a Paz. Lisboa: Edições Colibri. 2008

Buescu, Ana Isabel. Na Corte dos Reis de Portugal. Saberes, Ritos e Memórias, 2ª edição. Lisboa: Edições Colibri. 2011

Córdoba de la Llave, Ricardo. “Un recetario técnico castellano del siglo XV: el manuscrito H490 de la Facultad de Medicina de Montpellier,” En la España Medieval, n.º 28, (Madrid, 2005): 7-48

Costa, Manuela Pinto da. “Glossário de termos têxteis e afins,” Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património Série I, Vol. III (Porto, 2004): 137-161

Lopes, Ana Mafalda Pereira. Confortando Reis e Rainhas: as Cartas Consolatórias entre a Política e o Luto (Séculos XV-XVI). Braga, dissertação de Mestrado em História apresentada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. 2016

Marques, A. H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa: Aspectos de Vida Quotidiana. Lisboa: Sá da Costa. 1964

Nogales Rincón, David. “El color negro: luto y magnificencia en la Corona de Castilla (siglos XIII-XV),” Medievalismo, n. º 26 (2016, Múrcia): 221-245

Pastoureau, Michel. Black. The History of a Colour. Princeton e Oxford: Princeton University Press. 2008

Pereira, Maria João Lourenço. “A Morte.” In Nova História de Portugal. Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coord. João Alves Dias, vol. V, 682-688 (Lisboa: Editorial Presença, 1998)

Pereira, Maria João Lourenço. “O Vestuário.” In Nova História de Portugal. Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coord. João Alves Dias, vol. V, 627-633 (Lisboa: Editorial Presença, 1998a)

Requena Jiménez, Miguel. “El color del luto en Roma,” Gerión. Revista de Historia Antigua, vol. 30 (2012, Madrid): 209-218

Rublack, Ulinka e Hayward, Maria. The First Book of Fashion: The Book of Clothes of Matthäus & Veit Konrad Schwarz of Augsburg. Londres e Nova Iorque: Bloomsbury. 2015

Outros recursos

Ferreira, Luís Gonçalves. “Conhecer a Loba” in VESTE (disponível em: https://vestenovafcsh.wixsite.com/website/linhas-com-que-coser, consultado pela última vez a 11 de Fevereiro de 2021).

Glossário Portas Adentro (2007-2010). Lisboa, ICS / UL (disponível em: http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/index.aspconsultado pela última vez a 11 de Fevereiro de 2021).

Âncora 4

Conhecer os selos de controlo de qualidade

18/12/2020

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Selo de controlo de qualidade de têxteis em liga de chumbo.

Objecto recolhido em escavação (Casa dos Bicos)

© Fotografia de Guilherme Cardoso

(Centro de Arqueologia de Lisboa – CML)

Os selos de controlo dos têxteis eram uma forma de garantir ao comprador a qualidade e a certificação de proveniência do produto que adquiria. Obedecendo a diferentes critérios, a selagem dos tecidos fazia parte do sistema de controlo de qualidade da indústria têxtil nas épocas medieval e moderna.

Os selos eram feitos em liga de chumbo, metal pesado de coloração branca-azulada, que se tornava cinzento quando exposto ao ar. Este metal, também conhecido pela sua ductilidade, era, portanto, adequado para golpear/imprimir marcações (Rodenburg 2013: 53).A tipologia e a aplicação de selos de controlo de qualidade diferiam consoante as características das peças de tecido, isto é, as peças de qualidade superior eram marcadas com selos de grandes dimensões acompanhados de dois mais pequenos; os tecidos de média qualidade eram marcados com três pequenos selos e os de baixa qualidade recebiam apenas dois (Sousa 2016: 13). As marcas exibidas forneciam três tipos de informação: as principais, as de controlo e as de origem de fabrico. Aplicadas por um fiscal, as primeiras a ser colocadas eram as principais e confirmavam que o tecelão não produzira mais tecido do que aquele a que tinha sido autorizado, atestando igualmente a sua qualidade. As segundas, as marcas de controlo, garantiam ao comprador que o tecido tinha sido aprovado em todas as inspecções de qualidade a que tinha sido submetido. Para o comprador, esta indicação garantia a qualidade da matéria-prima e da produção do tecido, podendo, como tal, ser consideradas as marcas mais importantes na aferição das particularidades e características do produto. As terceiras, as marcas de origem, indicavam ao comprador onde o

tecido tinha sido fabricado, apresentando o nome ou outra indicação da cidade de manufactura. Para além destas três, poderiam ainda ser colocadas marcas de tingimento, pois nem sempre o lote de tecido era tingido no mesmo local onde fora fabricado (Rodenburg 2013: 32-34; Sousa 2016: 13-14).

Estes selos, de utilização ancestral, eram comuns em toda a Europa, mas também noutras áreas geográficas fora do espaço europeu, funcionando como objectos simbólicos que continham informação partilhada por várias comunidades, contribuindo para o controlo do comércio, e o cumprimento de todos os requisitos e regulamentos estabelecidos.

 

Aqui recorre-se à ilustração de apenas um dos exemplares, dos cinco identificados entre os materiais recolhidos na intervenção arqueológica da Casa dos Bicos, em Lisboa. Em liga de chumbo, este é um selo duplo, composto por dois discos ligados por uma tira, na parte inferior, e conectados na parte superior através de um sistema de assemblagem, que integra a própria peça. De um dos lados, envolta numa coroa, é possível ler-se a inscrição S*LAIDEN que se desenvolve em torno de um escudo com duas chaves que se cruzam, o brasão da cidade de Leiden (Holanda). No outro lado identifica-se um “leão rompante” de perfil e com as patas dianteiras erguidas. Na pata direita ergue uma espada e na esquerda um fáscio de setas (Sousa 2016).

Este exemplar mede aproximadamente 4,5 cm de altura e de 2,3 cm de largura.

Têm surgido, em contexto nacional, exemplares datados dos séculos XVII – 1.ª metade do século XVIII, nomeadamente nos contextos do Campo das Cebolas (Simão e Miguez 2017: 1891-1900); no Hospital Real de Todos-os-Santos (Boavida 2017: 449), no Largo do Chafariz de Dentro (Silva et al. 2012: 82-83), no Convento de Sant’Ana (Teixeira et al. 2015: 212), em Lisboa; na Casa do Infante, no Porto (Real et al. 1993: 38); no castelo de Torres Vedras (Luna e Amaro 2009: 102-103) e, em vários contextos no Algarve (Sousa 2016).

A Casa dos Bicos, local que encerra o contexto arqueológico de origem deste selo, foi na década de 1980 objecto de um programa de recuperação que originou uma profunda alteração dos seus espaços interior e exterior, através da reposição dos dois andares superiores que ruíram com o Terramoto de 1755, e da desmontagem de grande parte das estruturas arqueológicas, assim como da escadaria central (Amaro 2002: 12). As intervenções arqueológicas dessa época deram a conhecer várias fases de ocupação e transformação desta área da frente ribeirinha. Ao nível da fachada sul (loja, piso térreo), portanto virada ao rio, foram intervencionados três grandes espaços (denominados na documentação de campo como Salas A, B e C); ao nível da fachada norte, por onde seria a entrada nobre do edifício (sobreloja, piso superior), com acesso pela Rua Afonso de Albuquerque (Carita, Conceição, Pimentel 1983: 27), foram escavadas duas outras áreas (denominadas na mesma documentação por Salas D e E). Junto a um destes espaços superiores – Sala E, que corresponderia à área do pátio quinhentista – foi identificado um compartimento de feição rectangular, com cerca de 1,25 metros de largura por 2 metros de comprimento (denominada aquando da sua descoberta em 1982 como Sala E/Compartimento). Esta estrutura estava coberta por uma laje trabalhada e, no interior dela, encontrava-se um conjunto significativo de materiais dispostos de forma desordenada – cerâmica comum, faiança, porcelana, vidros, assim como restos alimentares, nomeadamente escamas de peixe (Amaro 2002: 26). De acordo com a análise da documentação de campo, este compartimento terá sido desactivado antes do Terramoto de 1755.

Os materiais provenientes da Sala E/Compartimento da Casa dos Bicos apresentam uma cronologia de meados do século XVII a meados da centúria seguinte, correspondendo aos materiais em uso num determinado momento do edifício durante a primeira metade de Setecentos, seguramente antes do terramoto de 1755. Detectam-se marginalmente peças do século XVI, como um fragmento de porcelana chinesa, seguramente elementos de prestígio de duradoura utilização. Relativamente ao conjunto cerâmico, verificamos que estes apontam, em muitos casos, para os séculos XVI-XVIII, indicando a perduração de muitas formas e produções de Lisboa ao longo da Idade Moderna. Podemos ainda salientar o predomínio da loiça doméstica, de que se destacam panelas, tachos, frigideiras e alguidares. Foram também identificados recipientes de mesa, nomeadamente pratos, tigelas e púcaros, bem como loiça de armazenamento e transporte, onde se destacam cântaros e infusas, e outros objectos destinados à higiene das casas (os servidores), à sua iluminação (candeias) ou ao entesouramento de moedas.

O vidro foi também encontrado de forma abundante no interior da estrutura. A par da vidraça, destaca-se sobretudo o avultado número de garrafas, cronologicamente situadas entre meados do século XVII e finais da centúria seguinte, algumas delas preservando ainda resíduos do conteúdo no seu interior. Estas deverão ter origem britânica, sobretudo as que apresentam uma cronologia mais recuada, já que a indústria de vidro em Portugal começou em inícios do século XVIII, na Real Fábrica de Vidros de Coina. Aos cálices encontrados neste contexto foi atribuída idêntica procedência. Relativamente aos outros objectos – os exemplares de jarros e o de galheta – terão estado relacionados com o quotidiano dos habitantes na Casa, nomeadamente com a ingestão de alimentos líquidos à mesa, relacionando-se frascos de perfume e urinóis com a higiene, ao passo que outro tipo de frascos se poderá relacionar com a utilização de medicamentos em casa. Surgem ainda exemplares que poderão ser classificados como tinteiros e como tal relacionados com actividades de escrita. Quanto à origem destes objectos, podemos também apontar para produções inglesas, sobretudo se considerarmos os paralelos estabelecidos.

Surgem ainda exemplares de selos de controlo de qualidade de têxteis, em liga de chumbo, que poderiam estar relacionados com o quotidiano da Casa e, em particular, com a aquisição/utilização de tecidos pelos seus habitantes. Todavia, também não podemos excluir a hipótese de estarem relacionados com o comércio de tecidos, por exemplo, na zona da loja, já que a mesma teria também essa função comercial.

Durante a Idade Moderna, e até ao terramoto de 1755, a Casa dos Bicos era composta por loja, sobreloja e dois andares superiores. Esta organizar-se-ia em torno de um pátio interior orientado a norte (Rua Afonso de Albuquerque), onde seria a entrada nobre do edifício. Desde o século XV surgiram palácios deste tipo em inúmeras cidades da Europa – sendo possível encontrar exemplares desde Moscovo a Segóvia, em Bolonha, Ferrara, Marselha e Narbonne (Marlk 1986: 25). Brás de Albuquerque, o proprietário desta casa, terá ido buscar influências, para a sua construção, a um dos monumentos mais célebres do Renascimento Italiano, o Palazzo dei Diamanti, em Ferrara, desenhado pelo arquitecto e urbanista Biagio Rossetti, por ordem de Sigismodo d’Este (1433-1507) (Paolleti e Radke 2005: 343). Se tivermos em consideração a arquitectura destes palácios italianos do Renascimento, as caves/adegas, a cozinha e outros serviços localizavam-se geralmente no piso térreo, com escadas que conduziam para a extremidade baixa de um grande salão ou piso (Philips 2005: 143-162). Essa distinção entre alto e baixo, ou seja, entre os pisos térreos e os pisos superiores, funcionava como um princípio de organização espacial. Os pisos superiores seriam destinados à intimidade e vida social dos proprietários, enquanto os inferiores, abertos para um dos lados exteriores, eram as divisões destinadas à logística, ao armazenamento e à cozinha (Senos 2002: 118, 191). O avultado número de garrafas de vidro encontrados neste contexto, associado às suas características estruturais e ao seu posicionamento no edifício, permitem, pois, levantar a hipótese de estarmos face a uma componente da organização logística deste palácio, porventura uma área de armazém, dispensa ou até de adega, eventualmente constituída em parte por vidraça, onde os proprietários guardavam os seus recipientes em vidro, de mesa, cozinha e, talvez também, de higiene. A variedade tipológica de materiais recuperados, bem como a proporção entre a loiça de cozinha, mesa e armazenamento, permite levantar a hipótese de aqui se arrumarem também outro tipo de objectos, face a uma eventual proximidade da cozinha. De qualquer modo, não podemos deixar de referir que os depósitos conservados no interior desta estrutura, com uma cultura material tão diversificada, podem também estar relacionados com um contexto de despejo doméstico. Isto é, a estrutura pode ter sido utilizada como lixeira (Amaro 2002: 27), produzida no momento da construção do pavimento que se lhe sobrepõe. A verdade é que, nalgum momento de ocupação do edifício anterior ao Terramoto de 1755, aquele compartimento terá sido cerrado e inutilizado pelos habitantes da Casa dos Bicos. As suas motivações só poderão ser perscrutadas quando tivermos uma visão mais vasta do todo do edifício, tarefa que levaremos a efeito nos tempos vindouros mais próximos.

Inês Pinto Coelho

(este texto faz parte da investigação em curso no âmbito da elaboração de tese de Doutoramento em Arqueologia Moderna com o título A Casa dos Bicos: estudo arqueológico de um espaço e quotidiano palaciano na Lisboa ribeirinha (séculos XVI-XVIII) )

 

Bibliografia:

Amaro, Clementino. “Percurso arqueológico através da Casa dos Bicos.” In De Olisipo a Lisboa. A Casa dos Bicos, coord. Maria da Conceição Amaral e Tiago Miranda (Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses), 11-27.

Baart, Jan. “Cloth Seals at Iroquois Sites,” Northeast Historical Archaeology: From the Netherlands to New Netherland: The Archaeology of the Dutch in the Old and New Worlds 34 (2005): 77-88.

Boavida, Carlos. “Objectos do quotidiano num Poço do Hospital Real de Todos-os-Santos.” In I Encontro de Arqueologia de Lisboa: Uma Cidade em Escavação, coord. Ana Caessa; Cristina Nozes; Isabel Cameira; Rodrigo Banha da Silva (Lisboa: Centro de Arqueologia de Lisboa / Departamento de Património Cultural / Direcção Municipal de Cultura / Câmara Municipal de Lisboa, 2017), 441-457.

Egan, Geoff. Provenance Leaden Cloth Seals. London, Tese de doutoramento em Arqueologia Medieval apresentada à University of London, 1987.

Luna, Isabel e Amaro, Clementino. Castelo de Torres Vedras, 2003: Relatório dos Trabalhos Arqueológicos. 2009 (disponível em https://historiasdetorresvedras.files.wordpress.com/2012/08/castelo.pdf, consultado em Setembro de 2020).

Markl, Dagoberto. “Renascimento.” In História da Arte em Portugal (Lisboa: Publicações Alfa, 1986), vol. 6.

Paoletti, John; Radke, Gary. Art in Renaissance Italy, 3.ª ed. Laurence King Publishing. 2005.

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Real, Manuel Luís; Gomes, Paulo Dordio; Teixeira, Ricardo Jorge; Melo, Rosário. “A cidade do Rei: o outro lado do rio da vila.” In O Porto das Mil Idades. Arqueologia na cidade (catálogo da exposição na Casa Tait), coord. Maria Isabel Noronha Pinto Osório (Porto, Câmara Municipal, 1993), 35-38.

Rodenburg, Nora Maria. Seal and Deal. Cloth production and trade between the Netherlands and Scania during the Late Middle Ages and Early Modern Times. Lund, Dissertação de mestrado em Arqueologia e História Antiga apresentada à Lund University, 2013.

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Sousa, José de. Selos de Chumbo. Os testemunhos dos intercâmbios comerciais e do controlo fiscal no Algarve, do século XV ao século XIX. Portimão: Associação Projecto IPSIIS, 2016.

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Âncora 2

Conhecer a Loba

30/10/2020

Loba

João do Cró (?), Representação das armas do marquês de Brandemburgo (pormenor), no Livro do Armeiro-Mor, 1509, f.º 34.º

©Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa

https://www.wikiwand.com/pt/Livro_do_Armeiro-Mor

Veste talar larga, ampla, fechada e sem mangas, de uso exterior que pendia sobre os ombros até ao tornozelo e podia cingir-se na cinta. A loba podia ser aberta ou cerrada, conforme tivesse aberturas laterais (“maneiras”) na altura das ilhargas por onde se podiam descobrir os braços. Segundo Rafael Bluteau, esta peça terá tomado o seu nome “por comer muito pano”, isto é, por se despenderem grandes quantidades de tecido na sua confeção.

No final da Idade Média e no decurso da primeira metade do século XVI, os dois géneros usavam loba em indumentárias civis, associadas a cerimónias públicas, honoríficas ou de luto. A grande austeridade da sua estrutura e o uso predominante de determinadas cores parecem justificar estas funções. O talhe dos seus elementos estruturais era reduzido e a ausência de uma silhueta demarcada tornavam esta peça numa densa camada têxtil colocada sobre o corpo que diluía e obliterava as formas biológicas. Vestir cores escuras – preto, roxo ou cinzento – ilustrava, de acordo com a mentalidade dessa época, um sujeito etéreo, elevado espiritualmente e despreocupado com o material. O sistema simbólico vigente privilegiava cores densas e luminosas em detrimento das pigmentações naturais das fibras (os pardos). A obtenção de tecidos tingidos com aquelas caraterísticas fazia-se através de processos dispendiosos e complexos, que exigiam corantes e mordentes de estimado valor monetário. A loba adaptava-se à proclamação pública de um estatuto político, económico e moral elevado, não só pelas grandes quantidades de pano empregues na sua confeção, mas também pela utilização de têxteis que, desde a seleção e preparação da fibra à tecelagem e acabamentos, adquiriam feição sumptuária.

Por alterações decorrentes do processo de moda, a loba evoluiu para uma peça exclusivamente masculina. Evidenciou-se como um traje amplamente usado pelo clero secular e pelos estudantes portugueses. As diversas pragmáticas dos séculos XVII e XVIII acentuaram o dimorfismo sexual da indumentária situando o uso de vestes talares como privilégio concedido a certos homens com determinado estatuto socioprofissional. A loba e outras vestes compridas podiam ser envergadas no exercício de determinadas profissões masculinas de grande prestígio intelectual, como professores universitários, juízes desembargadores e padres.

A associação entre o exercício de funções racionais/intelectuais e o uso de cores escuras, em marcha desde, pelo menos, o final da Idade Média, foi institucionalizada em diversos normativos civis e eclesiásticos do período moderno, nomeadamente regulamentos internos de estabelecimentos de ensino, leis sumptuárias e constituições sinodais. A fixação normativa destes signos permitiu a construção de uma virilidade alternativa. À soberba, vaidade e luxúria profanas, os clérigos deveriam opor um corpo digno, limpo e civilizado guiado pelas virtudes da temperança, castidade e da humildade. A masculinidade celibatária era mais racional do que física e a virilidade leiga assentava na imagética das virtudes nobres e cavaleiras. A indumentária profana demarcava claramente as características sexuais binárias e encontrava-se aberta à moda.

O poder e a dignidade proclamados nas vestes escuras e compridas pretendiam exortar o poder sacramental e ritual dos sacerdotes, fortalecido após o Concílio de Trento (1545 a 1563), o seu prestígio intelectual, pelo domínio da palavra escrita e falada, e a evidência da atitude paternalista quanto à moralidade dos leigos, evidenciando uma aparência ideal do corpo segundo ditames morais. Esta performance exercia-se dentro e fora das portas da igreja. Na segunda metade do século XVIII, era considerado indecoroso quando os clérigos seculares circulavam nas ruas das cidades com as suas roupas interiores (calções, véstia e casaca) à vista ou com as roupetas desabotoadas. Nesse contexto, a loba dignificava a aparência do clérigo, transformava o seu corpo num suporte da cabeça, considerada a parte fundamental mais nobre do ser humano, e obliterava os elementos do baixo corpo, tidos como inúteis e fortemente associados ao pecado, à luxúria e à expressão da sexualidade.

Apesar de ter mantido constante nas suas formas, a loba evoluiu no uso e passou a ser, ao longo da Idade Moderna, um traje masculino. Neste sentido, deixou de ser um recurso da moda e tornou-se um símbolo de poder de determinados grupos sociais e profissionais, cuja autoridade se afirmava através da proclamação de valores tradicionais com referências semióticas do passado.

Luís Gonçalves Ferreira

Doutorando em História Moderna (Lab2PT/Universidade do Minho). Bolseiro de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia com o projeto “Pobres, doentes e esfarrapados? Indumentária de pobres no contexto assistencial urbano do Porto e Lisboa (séculos XVII e XVIII)” (ref. 2020.04746.BD)

Bibliografia:

Baldini, Massimo. A invenção da moda: as teorias, os estilistas, a história. Lisboa: Edições 70, 2015.

Bernis Madrazo, Carmen. Indumentaria española em tiempos de Carlos V. Madrid: Instituto Diego Velázquez del CSIC, 1962.

Bluteau, Rafael. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero... autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos. 8 vols. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728.

Cabanas, Maria Isabel Morán. Traje, gentileza e poesia: moda e vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia Resende. Lisboa: Editorial Estampa, 2001.

Crespo, Hugo Miguel. «Trajar as Aparências, Vestir para Ser: o Testemunho da Pragmática de 1609». In O Luxo na Região do Porto ao Tempo de Filipe II de Portugal (1610), coordenado por Gonçalo Vasconcelos e Sousa, 93–148. Porto: Universidade Católica Editora, 2012.

Ferreira, Luís Gonçalves. «Pobres vestidos de preto: assistência, indumentária e esmola a padres em Braga (sécs. XVII e XVIII)». In Homens, Instituições e Políticas (séculos XVI-XX), coordenado por Alexandra Esteves, 12–31. Braga e Guimarães: Lab2PT Coleção Paisagens, Património & Território / Investigação, 2019.

Marques, A. H. Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. 4.a ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1981.

Marques, Maria Alegria. «Clérigos medievais: aspetos do quotidiano». Revista Portuguesa de História 47 (2016): 13–34. doi:10.14195/0870-4147_47_1.

Lipovetsky, Gilles. Império do Efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas. Traduzido por Regina Louro. 2.a edição. Lisboa: Publicações D. Quixote, 2010.

Palla, Maria José. Do essencial e do supérfluo: estudo lexical do traje e dos adornos em Gil Vicente. Lisboa: Editorial Estampa, 1992.

Pastoureau, Michel. Preto: história de uma cor. Lisboa: Orfeu Negro, 2014.

Pellegrin, Nicole. «Corpo do homem comum, utilizações comuns do corpo». In História do Corpo: Do Renascimento ao Iluminismo, editado por Georges Vigarello, traduzido por Maria da Graça Pinhão, 1:191–313. História do Corpo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2013.

Porter, Roy, e Georges Vigarello. «Corpo, saúde e doenças». In História do Corpo: Do Renascimento ao Iluminismo, editado por Georges Vigarello, traduzido por Maria da Graça Pinhão, 2:209–79. História do Corpo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2013.

Riello, Giorgio. História da Moda: da Idade Média aos nossos dias. Traduzido por Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Texto e Grafia, 2013.

Vigarello, Georges. História da Beleza: O corpo e a arte de embelezar da Renascença até aos nossos dias. Traduzido por Paula Reis. Lisboa: Editorial Teorema, 2005.

Âncora 3

Ilustração científica:

Traje de corte no dia 25 de Dezembro de 1500

 

23/12/2019

Manuel e Maria.jpg

Como visualizar a narrativa das fontes documentais históricas? Tendo com base de trabalho esta questão reunimos uma historiadora de arte, uma historiadora do período moderno e uma artista.

O nosso objectivo foi o de interpretar o que a fonte escrita descreve e, recorrendo às fontes visuais coevas, fazer uma proposta de interpretação da maneira como o rei D. Manuel I e a rainha D. Maria estavam   vestidos no dia 25 de Dezembro de 1500.

A fonte documental é uma carta escrita aos

Reis Católicos pelo embaixador na corte lisboeta,  Ochoa de Isasaga.

 

O documento pode ser lido em: 

 Antonio de la Torre e Luis Soarez Fernandez. 

 Documentos referentes a las relaciones   de   Portugal durante el reinado de los Reyes   Catolicos. Valladolid, 1963, vol. III, p. 78.

D. Manuel I vestia um gibão de cetim carmesim, dito “à francesa”. Ainda que esta análise esteja em curso, considerámos que a adjectivação se deverá ao facto de o modelo de gibão ser o utilizado na corte francesa ou ter sido dali importado. François Boucher na obra Histoire du costume en Occident, de l’antiquité à nos jours (p. 230) descreve   os gibões franceses como sendo decotados, deixando ver a camisa, e com   mangas de grande dimensão, fendidas   desde o ombro até ao cotovelo ou cortadas na zona do cotovelo.

 O rei vestia ainda umas calças de grã, uma   variante da cor escarlate, cujo pigmento era produzido a partir de um insecto hemíptero. Calçava uns borzeguins   brancos, um modelo de botas que nesta época tendia a chegar ao joelho, com solas finas e, provavelmente, feitas em couro.         

No que respeita aos acessórios, o rei utilizava uma cinta (isto é, um cinto com jóias) e uma espada (com a guarnição, isto é, o conjunto formado pelo pomo, o cabo e a guarda-mão) de ouro, e um colar de ouro com muitas pedras preciosas. Interpretámos este colar como sendo um colar de ombros, por ser o tipo mais comum no traje masculino cortesão. Na cabeça levava um barrete decorado com pequenas jóias de diamantes.

Para completar o traje, D. Manuel I envergou uma loba (um tipo de capa) de brocado preto, com bordados alcachofrados (técnica que cria relevo no bordado), aberta nos lados, deixando passar os braços e conferindo-lhes liberdade de movimento. Normalmente, a loba chegava até aos pés. Na nossa interpretação decidimos encurtá-la para permitir a visão das várias peças do traje.

D. Maria vestia uma fraldilha (uma espécie de anágua; saia interior) de veludo preto com um padrão formado por tiras horizontais de brocado, provavelmente também preto. Por cima vestiu um hábito (um tipo de vestido) de veludo carmesim, talvez aberto à frente, decorado com muitas pérolas e laçadas, o mesmo que terá utilizado no dia em que se casou por procuração no Alcázar de Sevilha.

Na cintura usava um cós (faixa de tecido que dá a volta à cintura) em veludo brocado morado (isto é, cor de amora; roxo) com pontas (isto é, formas triangulares nas extremidades), bordado a fio de ouro. Do cós caía uma dianteira (uma faixa de tecido que caía direita desde a cintura até aos pés) do mesmo tecido e, por cima desta e do cós, ostentava uma cinta (isto é, um cinto com jóias) de ouro. Este cinto é descrito como sendo em folha de ouro martelado formando motivos decorativos semelhantes   a maçarocas, mas no nosso desenho optámos por não definir essas formas.

No pescoço usava uma gargantilha de pérolas grandes, com uma cruz de diamantes pendente, e um   colar de esmeraldas decorado com a letra "M". Por fim, usava muitas achorcas (um tipo de pulseira) nos   pulsos (que não estão no desenho porque a descrição não esclarece como se relacionavam com os punhos   da camisa).


Ochoa de Isasaga não descreveu como é que a rainha cobria a cabeça nem como tinha o cabelo arranjado, pelo que nos baseámos na representação de D. Maria na Fons Vitae (1515-1517; autor   desconhecido), actualmente no Museu da Misericórdia do Porto, para nos ajudar a interpretar a imagem da rainha.

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